Colunista

Lucas Dalfrancis

Vida de Lupa

Quem é a puta aqui?

Publicado em: 10 de janeiro de 2025 às 11:22
compartilhe essa matéria

Mas Amsterdã me devolveu outra coisa: as putas daqui têm até o Museu do Sexo, e as do meu bairro só tinham a porta dos fundos.

Ela é uma puta.
Puta!

Repetiam isso com tanta certeza que eu, criança, acreditava que a palavra carregava um crime. Não era um rótulo, era um decreto.
Lá estava a esposa traída, gritando de novo no cabaré Dois Corações ao lado da minha casa, em Vera Cruz, no Bom Jesus. Bairro sério. Gente séria. Alemanices de personalidade dura. Ser puta era não ter remorso. Era arrancar o pão da boca dos filhos alheios e sair com as migalhas coladas no batom.

Eu cresci com isso como quem herda uma convicção. Ser homem bom era desviar o olhar do prazer alheio. Esse era meu pensamento pasteurizado — até o dia de hoje, explico: vim conhecer a famosa Rua da Luz Vermelha, em Amsterdã, uma alameda icônica da Holanda onde prostitutas ficam expostas em vitrines como bonecas de sexo prontas para locação. E vi, e vivi, em silêncio, uma experiência sociologicamente surreal.

Afinal, você não passa por Amsterdã sem espiar o pecado. O Red Light District é um lugar onde a curiosidade humana e o desejo se encontram sob luzes vermelhas. Mulheres de sutiã e calcinha posam em vitrines iluminadas como sobremesas de padaria: sonhos recheados para serem levados e devorados. Não dá pra desviar. Elas chamam. Mandam beijo. Jogam charme com o movimento quase matemático de quadris. Umas loiras, outras ruivas, morenas também. Tem para todos os gostos. É uma padaria da carne humana.

Lá, ninguém tira foto. E ninguém tira, mesmo. Não por ameaça, mas por respeito. As putas são trabalhadoras de vitrines regulamentadas, com seus impostos e direitos desde o ano 2000, longe dos olhos atravessados da minha Vera Cruz. Aqui, elas são cidadãs. Lá, eram fantasmas.

E então aconteceu algo incomum, ou melhor, desconcertante. Entrei em uma ruela inóspita, e ela estava lá, me olhando.

Uma senhora de uns 70 anos.
Completamente nua.

Seios fartos expostos, pele que o tempo amoleceu. Me olhou nos olhos. No meu susto, vi que ela me viu. Meu desconforto foi espelhado. E, antes que eu entendesse, ela puxou a cortina de veludo e me mandou embora, zangada. Em alemão. Foi como um tapa. Não dela, mas do meu próprio silêncio.

Talvez ela pensou que eu fosse seu neto. Ou que eu não era cliente. Ou que, no fundo, eu carregava nos olhos aquela mesma Vera Cruz do Bom Jesus: o julgamento, o susto, o medo de ficar mais um segundo cara a cara com a sujeira do pecado.

E eu saí rua afora. Saí como entrei: calado. Com os olhos escandalizados. Sem tirar foto, porque trato é trato. E a curiosidade, na verdade, já tinha sido paga com o peso da vergonha.

Ali, naquela alameda vermelha, solitária e com a temperatura a zero grau, entendi que nem todo passado é só memória. Ele é postura, jeito de interpretar, ângulo de olhar. Eu trouxe Vera Cruz comigo até Amsterdã. Mas Amsterdã me devolveu outra coisa: as putas daqui têm até o Museu do Sexo, e as do meu bairro só tinham a porta dos fundos.

Eu não sei o que aquela senhora pensou. Sei o que eu pensei: que o pecado só tem endereço quando a gente não o entende.

E, quando caminhei para fora daquela viela torta, senti que deixei a minha Vera Cruz cair do bolso e se perder no caminho. Minha vó Nely, moralista, diria que segue sendo “chinaredo e putaria”. Eu gosto de acreditar que pode ser cultura.