Colunista

Lucas Dalfrancis

Vida de Lupa

Piedade

Publicado em: 20 de fevereiro de 2025 às 10:37 Atualizado em: 20 de fevereiro de 2025 às 10:38
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A vida, ingrata, não dá pausas. E a burocracia, essa criatura sem alma, menos ainda

Piedade. (Ou o que restou do sonho americano depois do luto e da lei.)

Eles estavam ali, num jantar qualquer, desses em que se bebe sem sede e se ri sem precisar. Eu era apenas um intruso na história deles, mas tem vidas que chamam a gente pelo canto dos olhos. Conceição e Marco Antônio. Um casal que parecia saído da vitrine de alguma agência de modelos, mas que carregava no olhar algo que nenhuma fotografia revelaria: um peso sem nome, um luto que não coube no peito e transbordou no destino.

Eles foram embora do Brasil para ganhar o mundo. Quem nunca? A América tem esse feitiço de adolescente, essa promessa de que tudo vai dar certo se você suar o suficiente, se você abaixar a cabeça e trabalhar dobrado. E eles suaram. Muito.

O começo foi duro, mas não demorou para que a sorte viesse sentar na sala. Empregos bons, dólar na conta, um carro que não morria no farol. A vida começava a parecer aquele futuro que prometeram. Mas futuro é coisa arisca, e às vezes ele não pede licença para desandar.

Foi quando o telefone tocou. E telefone que toca na madrugada nunca é boa notícia. O câncer da mãe de Conceição, aquele fantasma que rondava de leve, sem se impor, de repente decidiu correr. Galopante, disseram. Não havia mais tempo para nada além de um último voo.

Ela veio. Veio com pressa, veio com medo, veio tentando negociar com Deus um fôlego a mais. Mas Deus, às vezes, fecha os ouvidos. E quando Conceição desceu no Brasil, já não havia mãe para abraçar. Só um velório simples, como ela sempre foi. Uma mãe que não chegou à aposentadoria, que sonhava com o mar, mas partiu sem tempo de molhar os pés.

Marco Antônio veio correndo atrás, num voo apressado e com duas mudas de roupa. Quando o amor da sua vida sofre, não existe distância que não seja vencida. Mas não chegou a tempo. O abraço que ele queria dar foi dado ao vento.

A vida, ingrata, não dá pausas. E a burocracia, essa criatura sem alma, menos ainda. Depois de uma semana de lágrimas e ausências, era hora de voltar. O trabalho os esperava. O futuro os chamava.

Mas aeroporto não é lugar de poesia. É lugar de lei.

Na fila da imigração, um oficial conferiu os passaportes, franziu a testa, coçou o queixo. Algo estava errado.

— Não podem voltar.

— Como assim? Temos visto, temos casa, temos emprego!

— O processo de validação de permanência ainda estava em curso. Não poderiam ter saído.

— Minha mãe morreu! Olha aqui o atestado de óbito. Tenham piedade!

O homem olhou o papel como se fosse um ingresso de cinema. Olhou para ela como se olhasse para uma mala extraviada.

— A lei é clara.

A piedade, não.

Foram jogados numa cela fria, sem cobertor, sem telefone, sem direitos. Sem nome, sem história. Apenas duas pessoas que erraram ao amar demais e esqueceram de avisar ao governo.

Marco Antônio não falava. Apenas olhava para o chão, mastigando uma dor que não se engole. Conceição soluçava baixo, até o soluço ser proibido. Quando o guarda apareceu com um rifle na mão, ela entendeu que não era bem-vinda.

Foram deportados sem tempo de piscar.

E a casa?

E o carro?

E os empregos?

E a vida?

Descarga. Tudo escoado pelo ralo, como se nunca tivesse existido.

Faz um ano. O processo dorme em alguma gaveta da justiça. O advogado não promete nada, mas também não descarta tudo. E eles esperam. Esperam como quem já cansou de esperar.

No jantar, quando Conceição fala, sua voz é uma corda bamba. O choro vem preso na garganta, do tipo que não desata. Marco Antônio nem fala. Olha para o copo como se o copo pudesse resolver alguma coisa.

E no fim, ele solta, como um epitáfio de tudo o que tentaram construir:

— A gente só queria ser feliz.

Mas felicidade, às vezes, é um privilégio negado.