Mas o que tínhamos para roubar? Um velho rádio? Uma batedeira de segunda mão? A casa era tão simples quanto o chão que nos sustentava
Era verão, novembro. Um calor sufocante pairava sobre Vera Cruz, a minha pequena terra, onde o tempo parecia sempre preguiçoso. Eu, menino de sete anos, estava hipnotizado diante da televisão, assistindo ao fantástico E.T. – O Extraterrestre. A pipoca doce grudava nos dedos, e o cheiro do chocolate preenchia o quarto. Nada à minha volta parecia real; estava mergulhado numa realidade paralela, onde bicicletas voavam e amizades desafiavam o universo.
Naquele momento, minha casinha branca — um chalé modesto de cinco cômodos fincado à beira de um asfalto que separava duas cidades — parecia tão segura quanto os refúgios de Spielberg. As histórias do Bairro Bom Jesus eram sempre ingênuas e inocentes: galinhas desaparecidas, no máximo, com panelas que se confundiam entre vizinhos. O perigo, para nós, era algo que habitava apenas os filmes da televisão.
Mas então, três batidas na porta. A madeira vibrava no silêncio. Minha irmã, Kika, sempre rápida e curiosa, nem pergunta quem está do outro lado. Ela gira a chave. E gira o destino.
A porta explode em movimento. Ela é arremessada para longe, e a invasão toma corpo: uma mulher de cabelos negros, olhos arregalados e alma em pânico entra gritando por socorro. Sua voz rasga a realidade como um raio numa tempestade.
Minha mãe, no pequeno cômodo onde fritava enroladinhos na banha de porco, larga tudo e corre. O fogão fica ligado, as panelas em chamas. Ela não entende, mas o instinto é maior que a lógica. Kika, machucada, dispara porta afora, atravessa o terreiro e pula o arame farpado como se o próprio medo lhe desse asas. Seus jeans se rasgam, sua pele sangra, mas ela não para. Ela não pode parar. O campo se torna seu aliado, e a vizinhança, seu refúgio.
Minha mãe também se lança pela cerca, mas algo a puxa de volta — uma memória terrível que pesa em seus pensamentos: eu. Ela volta, ofegante, até o chalé e me encontra ainda sentado no chão, o rosto lambuzado de pipoca e confusão. Seus olhos dizem tudo: corra. Ela me puxa com força, me carrega como um saco de batatas e me arremessa pela janela para longe do perigo.
Nós dois nos escondemos atrás de um pé de pitanga, enquanto a voz da minha mana Kika, agora um megafone humano, ecoa pelos campos: “É um assalto! É um assalto!”
Mas o que tínhamos para roubar? Um velho rádio? Uma batedeira de segunda mão, a ferramenta sagrada da minha mãe para fazer bolos? A casa era tão simples quanto o chão que nos sustentava.
O circo se arma rapidamente. Vinte vizinhos — todos com ares de protagonistas do cotidiano — formam um muro humano ao redor do chalé. Eles se aproximam, sussurram, especulam. O caos se espalha pelo ar quente da nossa vilinha de emoções miúdas.
A sirene se anuncia ao longe, como uma melodia de alívio. A viatura, única na cidade, chega derrapando. Dois policiais saem com pressa, mas também com a calma de quem sabe que ali, na nossa terra, nada é tão urgente.
A verdade finalmente emerge: não era um assalto. Era uma briga de casal. A mulher havia pulado de um carro em movimento, fugindo de um homem que, para nós, parecia um vilão de cinema. Ele a seguira, tentando recuperá-la, tentando… o quê? Amá-la? Controlá-la? O mundo dos adultos sempre fora um mistério.
E sobre a arma que minha mãe tanto gritava? Não era arma. Era um par de óculos escuros.
“Minha senhora, isto aqui não mata ninguém”, disse o homem, segurando o objeto com um misto de constrangimento e cansaço.
Minha mãe, como toda boa narradora, insistiu na grandiosidade do evento: “Mas ele podia ter atirado! Podia ter nos matado!”
A mulher foi levada para a delegacia, junto ao homem que a perseguira. E nós, voltamos ao chalé com os restos do medo e a pipoca agora murcha no chão.
O pior de tudo? O filme da Sessão da Tarde já tinha acabado. Não havia como voltar à cena.
Mas quem precisava de Steven Spielberg quando Vera Cruz nos entregava histórias como essa, carregadas de exageros e coragens desajeitadas, dignas de um realismo mágico tão vivo quanto a infância que eu jamais esqueci?
A saudade do que vivemos é para sempre.
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