O Brasil real é o do pai que pede fralda no sinal, da mulher que estende a mão na esquina e recebe um olhar vazio como resposta
Era uma quarta-feira qualquer, e eu saía de um boteco do bairro. Noite calma, um silêncio quase respeitoso, como se a cidade tivesse decidido cochilar junto com as estrelas. A rua vazia, aquela paz de um dia que termina sem pressa. Foi quando o corte veio seco, como uma lâmina fria no meio do peito: uma voz atrás de mim, miúda, quase sem forças, mas suficiente para rasgar o sossego. Uma jovem, com uns trinta anos talvez, desdentada, olhos inchados de dor e desamparo, me pediu dinheiro. Na hora pensei: mais uma! Mais uma na estatística invisível de quem a gente aprendeu a ignorar. A mendicância virou paisagem nesse país, um contraste grotesco com os discursos inflamados da TV, com as análises entusiasmadas dos economistas em seus ternos alinhados. O Brasil real não é o dos gráficos e nem dos powerpoints de crescimento econômico. O Brasil real é o do pai que pede fralda no sinal, da criança que vende pano de prato no restaurante, da mulher que estende a mão na esquina e recebe um olhar vazio como resposta.
Sigo em frente, fingindo que não ouvi, como todo mundo. Dez passos adiante, e algo me trava. Sabe aquele gosto amargo que sobe, como se a consciência resolvesse tirar uma folga da anestesia? Normalizamos a dor dos outros. Aceitamos que o nosso mundo é assim: eu tenho, ele não tem, e paciência. Que trabalhe! Que levante e faça algo, que não fique aí, mendigando na saída de um boteco. Mas algo naquela garota não me deixou em paz. O sofrimento dela foi um soco, me tirou o ar por um segundo, e precisei voltar.
Comprei um prato de arroz com costela, e entreguei numa tigela simples, dessas de isopor. Virei as costas e saí antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, porque eu sabia que, se ela falasse, eu desabaria. Enquanto esperava o manobrista trazer o carro, fiquei de longe, observando-a. Ela devorava aquela comida como se fosse a primeira refeição em dias, mas não era só isso. Ela sorria, como se tivesse ganhado na loteria, como se tivesse encontrado um milagre no meio da sujeira da calçada. Sorria de boca aberta, desdentada, um sorriso puro de gratidão, de vida e não de morta – de fome.
Eu sei o que você vai dizer: “Você fez errado, Lucas. Deu o peixe, não ensinou a pescar.” Mas, naquele momento, o meu coração não queria saber de teorias, de economias de mercado, de pedagogias de superação. O meu coração, tão acostumado a bater impassível no peito, se recusou a dormir em paz sabendo que alguém ali estava faminto. E sabe de uma coisa? Dormi leve, dormi mais gente.
A verdade é que, nesse país, a fome não pede licença. Ela aparece, invade a sua mesa, o seu prato, o seu pensamento. E a gente segue anestesiado, atravessando o dia como se a miséria fosse parte do cenário, como se a dor não doesse. Aquela jovem me ensinou algo que nenhum discurso bonito conseguiu: às vezes, alimentar alguém é mais urgente do que tentar salvar o mundo inteiro. Às vezes, um prato de arroz e costela é o milagre que cabe nas suas mãos. E, se for pra errar, que eu erre assim: sendo humano, tropeçando na minha própria compaixão, mas sem perder a coragem de voltar atrás e tentar fazer diferente, mesmo que por uma noite, mesmo que por dez passos.
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