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Autismo: um olhar muito além das limitações

Publicado em: 19 de abril de 2021 às 17:58 Atualizado em: 01 de março de 2024 às 16:12
  • Por
    Taliana Hickmann
  • Fonte
    Jornal Arauto
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    Para a família de Eduardo Martins Flores, de 17 anos, descobrir o Transtorno do Espectro Autista fez com que enxergassem muito mais as potencialidades do menino do que suas dificuldades, propiciando o apoio e a assistência que ele tanto precisa

    O diagnóstico do Transtorno do Espectro Autista (TEA) chegou para Eduardo Martins Flores e sua família não como uma limitação, mas sim como um ponto de partida, a partir do qual puderam entender como o menino enxergava o mundo e como poderiam acolhê-lo e apoiá-lo. Na época, Dudu, como é conhecido, tinha sete anos, porém os primeiros sinais se mostraram muito antes, quando tinha por volta de um ano. 

    Caçula de três irmãos, os pais Ane Diana Arruda Martins e Idalêncio Flores notaram na época diferenças no desenvolvimento de Dudu em relação ao de Patrícia e Gabriel – os filhos mais velhos, hoje com 21 e 25 anos -, principalmente motoras. “Ele não engatinhou, era mais parado que as outras crianças. Por isso fomos orientados pela pediatra a começar a fisioterapia para estimulá-lo e já com um ano e meio ele começou a frequentar a APAE [Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais]”, recorda a mãe. 
    Sem nunca ter convivido com autistas e com muitas dúvidas sobre o que poderia causar as limitações no desenvolvimento e na comunicação do filho, Ane e Idalêncio sentiam dificuldades em auxiliar Dudu. Desta forma, quando descobriram se tratar do TEA, a sensação de medo veio acompanhada de alívio. “Deu muito medo, desde o momento em que veio a suspeita de autismo. Mas aos poucos esse medo deu lugar ao conhecimento sobre o assunto e vimos que não era um bicho de sete cabeças, só precisávamos compreendê-lo”, conta a mãe, ao revelar que a partir dali, puderam entender muito além das limitações de Dudu, passando a enxergar seus potenciais. 

    Entre as muitas qualidades do garoto, hoje com 17 anos, sem dúvida está o senso de humor – desenvolvido a partir dos programas de TV e séries preferidas. “Adoro assistir televisão. Tem o Chaves em desenho no SBT, que passa todo o sábado de manhã. Tem o Mr. Bean. Ele é um cara muito engraçado”, comenta Dudu, ao citar que muitas vezes as brincadeiras fazem a avó Margarida, de 76 anos, ralhar com ele. “Eu gosto de incomodar ela”, diz aos risos, quando se refere às pegadinhas ou histórias hilárias que conta para ela. Esse jeito divertido de Dudu fica evidente também quando ele abre um largo sorriso, ao recordar das vídeo cassetadas do programa Domingão do Faustão as quais assiste. Aliás, mais que recordar as vídeo cassetadas, bem como os memes que vê na internet, sabe contar e explicar cada um com riqueza de detalhes. Segundo ele e a mãe, trata-se de uma das potencialidades dos autistas, desenvolver uma memória muito precisa dos acontecimentos. “Quando ele sorri desse jeito, dá pra saber que ele está se lembrando da vídeo cassetada com muita clareza, do início ao fim”, complementa Ane.

    SONHO

    Um entusiasta da internet e de computadores, além de assistir memes e vídeo cassetadas, é neste meio que o garoto gosta de mostrar seu lado criativo. Em fevereiro do ano passado criou um canal no YouTube – que leva seu nome – onde posta vídeos de momentos divertidos e montagens, como se dividisse com os usuários as ideias e os momentos que o fazem gargalhar. Tamanho interesse por esse universo, onde também adora interagir nas redes sociais, fez aflorar um sonho: cursar futuramente ciência da computação. “Quero ir todo o dia pra Unisc fazer Ciência da Computação”, enfatiza. 

    Até lá, Dudu ainda tem alguns desafios pela frente, mas que busca atravessar com determinação. Entre eles diz que precisa estudar bastante neste ano para passar nas provas e chegar no 1º ano do Ensino Médio. Segundo a mãe, em 2022 ele deve deixar a Escola Duque de Caxias, onde estuda atualmente, e ir para um educandário do Estado. “Em alguns aspectos, como relacionado às tecnologias, ele está de acordo com sua faixa etária, mas na escola está cronologicamente atrasado em relação aos outros. Alfabetizou-se com sete anos, mas segurei pra incluí-lo na série regular, por sentir muito medo da convivência dele com os outros, medo dele sofrer bullying. No ano que vem será um novo desafio, já que ele vai ter que ir para outra escola, muito provavelmente sem o acompanhamento de um monitor, o que pra ele é essencial”, revela Ane. 

    PANDEMIA EXIGE NOVA ADAPTAÇÃO

    Por falar em desafios, a pandemia do novo coronavírus tem sido um dos grandes na vida de Dudu, já que mudou completamente sua rotina – aspecto muito importante para os autistas, já que vem acompanhada de estabilidade e segurança. Apesar da família ser tradicionalmente caseira, o menino sente falta de ir à escola todos os dias, o que pode impactar no seu desenvolvimento e interação social – questões de maior dificuldades para esses pacientes. Além disso, Dudu passou a lidar com outras mudanças, que causaram maior estresse em todos: o pai fora demitido do emprego, a família mudou-se para uma nova casa e o irmão, Gabriel, com quem era muito unido, passou a viver com a namorada. “Isso é difícil para todos, mas para o autista, que precisa de um mínimo de previsibilidade, isso é terrível”, conta a mãe, ao citar que Dudu resolveu propor uma atividade diferente para aliviar o estresse. 

    Segundo o menino, a saída foi iniciar caminhadas com a mãe, sempre usando máscara. Aliás, como os autistas costumam seguir as regras à risca, o uso do item de proteção, bem como a lavagem das mãos constantemente, virou facilmente um hábito para Dudu – o que é motivo de alegria para a família, já que ele se tornou exemplo dentro e fora de casa em relação aos cuidados. 

    SEMPRE SURPREENDENDO

    Assim como em relação à pandemia, Dudu costuma surpreender os pais e irmãos nas situações diárias, sendo além de divertido, muito carinhoso com aqueles que estão ao seu redor. Para os familiares são essas singularidades que o fazem ser especial. Inclusive, na noite em que a reportagem entrou em contato com Ane para propor a matéria, ela teve um sonho que deixou claro o quão único o menino é para ela e os demais. “No sonho, tínhamos no pátio de casa uma piscina de chão pequena, a água não era das mais limpas. Nela estava um golfinho adulto, que nadava e girava fazendo piruetas. Ele estava bem acostumado comigo e meu marido. Esse mesmo golfinho, quando chegava perto da beira da piscina se transformava em onça. Uma linda onça preta, magnífica e dócil. Então o sonho terminou e fiquei tentando entender o que ele representava”, revela a mãe. Após acordar e pensar um pouco, ela entendeu seu significado. O golfinho representava Dudu. Um ser maravilhoso, único e dócil, que pertence a algo maior que este mundo. Segundo a mãe, ele e outros autistas não podem ser presos numa piscina pequena, de água meio limpa, meio suja, pois não cabe a ninguém limitar a sua natureza. 

    LUZ AZUL – ESPAÇO DE ACOLHIMENTO

    Além da APAE, que nos primeiros anos de vida foi porto seguro para Dudu e a família, atualmente a Associação Pró-Autismo de Santa Cruz do Sul Luz Azul exerce papel fundamental, como um espaço de troca de informação e manutenção de laços sociais. A família participa da Associação desde sua criação em 2012 e junto a ela, além de Dudu criar amizades muito significativas, seus pais encontram a possibilidade de trocar experiências com outros familiares de autistas. Durante a pandemia, apesar de não haver mais os encontros presenciais, Ane e Dudu costumam participar das lives promovidas pela Luz Azul semanalmente, o que tem feito muito bem para ambos e a família como um todo, mantendo o vínculo com os amigos criados neste ambiente acolhedor. 

    Sintomas aparecem até os três anos

    O diagnóstico do Transtorno do Espectro Autista (TEA) é baseado nos sintomas e no comportamento dos pacientes. Conforme o neuropediatra Cristiano Freire, se dá quando identificados atrasos ou falhas na comunicação e na interação social da criança. Assim como ocorreu com Eduardo Martins, o médico explica que os sintomas aparecem antes dos três anos. “Ninguém se torna autista depois dessa idade, mas pode acontecer de o diagnóstico ocorrer mais tarde ou na fase adulta. No caso do adulto, pode ser que tenha apresentado um quadro leve de sintomas a vida toda, que foram negligenciados, amenizando o impacto social ou escolar, por exemplo”, explica, ao avaliar que a maioria dos casos são diagnosticados na infância – tal como foi com Dudu.

    Em bebês, o especialista esclarece que os sinais transparecem pelo pouco contato visual com a mãe, quando não sorriem, não vocalizam sons, ficam muito concentrados em seu mundo ou sempre olhando para a luz ou as mãozinhas, como se alheios ao que está acontecendo. Nas crianças maiores sinaliza o atraso na fala ou até mesmo a falta dela, o fato de responderem fazendo um eco à pergunta, ou seja, respondendo com a mesma frase que foi perguntada, além de ser difícil conseguir sua atenção, seja através do olhar ou quando alguém lhes chama, parecendo até mesmo surdas por não corresponderem. 

    NÍVEIS DO AUTISMO

    A interação e o grau de dependência que o autista tem das demais pessoas depende do nível, que pode ser 1, 2 ou 3. No caso de Dudu, por exemplo, está situado entre o 1 e o 2, sendo o mais leve quando o paciente consegue ter maior independência, podendo na vida adulta constituir família e trabalhar e, o moderado, quando tem uma certa autonomia, mas ainda assim precisa de supervisão. Contudo, no nível três, o mais grave, o autista geralmente não fala ou o faz muito pouco, sendo bem mais difícil compreender sua comunicação verbal, além de não ter autonomia para atividades básicas, precisando de cuidados mais intensos. 

    TRATAMENTO

    Freire orienta que os profissionais mais habilitados para determinar o diagnóstico são neuropediatras, psiquiatras infantis e pediatras. “Embora o diagnóstico seja feito por médicos, a maioria dos tratamentos é feito por áreas adjacentes à medicina, através de terapias como ocupacional, psicológica, psicopedagógica ou fonoaudiologia. Além disso, a maioria das pessoas autistas tem comorbidades, como Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, deficiência intelectual, Transtorno de Ansiedade, Transtorno de Coordenação Motora, entre outros, sendo necessários outros tratamentos”, salienta. Segundo o neuropediatra, a medicação não é via para o tratamento, mas é usada, em sua maioria, para minimizar sintomas e controlar quadros desenvolvidos.