Cristiano, Rogério, Anilton, Marlise e João não se conhecem, mas pertencem ao mesmo time: o do recomeço
Superar uma dificuldade pode ter peso e significado diferentes na vida de cada pessoa. Pode ser passar de ano na escola, comprar um carro, consertar um aparelho estragado, fazer as pazes com o irmão, pagar uma dívida. Pode ser sobreviver. Pode ser voltar a sonhar. Reconstruir o que o temporal destruiu. Aprender o que parecia inatingível. Estas histórias são de superação. No dicionário deles, superação é sinônimo de recomeço.
Era pouco passado da meia-noite, 26 de março de 2018, quando tudo aconteceu. O candelariense Cristiano da Roza, 29 anos, encerrou o trabalho ao desligar o projetor da sala de cinema e começou o trajeto de volta para casa. De moto, foi surpreendido por um veículo em um semáforo no centro de Santa Cruz. “Passei da sinaleira, vi a luz do carro e ouvi o barulho do choque com a moto. Já estava no chão, não apaguei em nenhum minuto”, recorda o jovem, conhecido pelo apelido de Taxinha. Ele mesmo tirou o capacete enquanto o motorista do outro veículo implorava para ele ficar imóvel. Só sentia dor, muita dor nas costelas, mas nem imaginava a extensão das lesões, até que ergueu o corpo e viu. “Era o corpo para um lado e a perna esquerda, a de jogar bola, para outro, com fratura exposta”, completa ele, conhecido na região por sua atuação no futebol, especialmente nas quadras, onde já defendeu as cores da Assaf na série ouro do Estadual de Futsal e do Atlético de Candelária.
Do socorro do SAMU até chegar ao Hospital Santa Cruz, Taxinha sempre manteve a consciência, até a aplicação da anestesia para a colocação do dreno no pulmão. Na sala de cirurgia, foi preciso ainda operar o joelho fraturado, o colo do fêmur e fixar um ferro e 13 parafusos em sua perna esquerda.
“CORRE, SENÃO VAMOS PERDÊ-LO”
Passadas as cirurgias, o jovem havia perdido tanto sangue que foi preciso levar às pressas para a Unidade de Terapia Intensiva (UTI). A última lembrança antes de perder a consciência ainda ecoa em sua mente. Era de uma enfermeira, repetindo como uma prece: “corre, senão vamos perdê-lo”. Foram mais dois dias na UTI que Taxinha respirou com a ajuda de aparelhos e do lado de fora do hospital, uma legião de amigos se mobilizava para doar sangue ao jovem, que permaneceu 10 dias na casa de saúde. Depois de cinco costelas e joelho quebrados, fratura exposta na perna e retirada do baço, que estava com hemorragia, Cristiano da Roza perdeu 12 quilos, mas ganhou uma nova chance de viver.
Enquanto familiares e médicos temiam uma possível depressão, já que a recuperação exigia pouco esforço e muito descanso, coisas impensadas antes na correria de quem acumulava jogos com os amigos, Taxinha focou em ficar bem e com o pensamento otimista. “Nunca pensei que não ia dar (para sobreviver), mas achei que não ia conseguir fazer as coisas que gosto, como o futebol, ou simplesmente caminhar sem ter que depender de alguém para coisas básicas”, sublinha. Mas ele conseguiu. Encarou a fisioterapia e os exercícios em casa, tratou de substituir o temor pela depressão pelo foco na reabilitação. E desta forma vence uma partida a cada dia.
“Eu tinha tudo para estar morto… sou um milagre de Deus”
Uma criança revoltada e que cresceu fazendo de tudo para chamar a atenção, desde a cor do cabelo ao vestuário, num município de 11 mil habitantes no interior do Rio Grande do Sul. Sofria bullyng, não conseguia ser aceito em grupo nenhum. Até os 15 anos, Rogério Lüedtke, de Vale do Sol, não chegava perto de cigarro ou bebida. Drogas mais pesadas, então, fora de cogitação. O pai faleceu, as ofertas para experimentar algo que aliviasse o sofrimento apareceram e a sensação de euforia causada pelo uso da cocaína uma vez fez com que o uso se repetisse e se tornasse frequente, até ser diário. Como se tivesse encontrado a solução para suas angústias. Mas os problemas apenas estavam começando.
Rogério foi viciado em cocaína, depois associada com maconha, dos 15 aos 22 anos. Não tinha mais controle sobre sua vida e quase morreu por overdose em mais de uma oportunidade. Quando o efeito da droga passava, voltava a depressão. “Minha vontade era de morrer. Aí eu pensava, em momentos de lucidez: eu não sou assim, sempre fui um sonhador”, confessa. Rogério chegou ao fundo do poço, roubava da família e trabalhava para sustentar o vício. Aos 16 anos começou a beber e aos 18 a fumar. E a cocaína cada vez mais presente. Chegou a cheirar 22 buchas em três dias.
Foi em outubro de 2017 que Rogério deixou uma carta para o irmão e partiu para Santa Catarina, em busca de tratamento em uma comunidade terapêutica. “A maior mentira que um dependente cria é dizer que para quando quer”, frisou ele. Foi na fé em Deus que Rogério encontrou alívio para sua dor e força para se reerguer. Ele se apegou à religião e entre os momentos de choro, de vontade de desistir, de continuar, de emoções que oscilavam, Rogério ocupou seu corpo e sua mente com trabalho braçal, na lavoura, e seu espírito, em oração. “Encontrei em Deus a misericórdia, porque nem eu acreditava mais em mim e Ele fez a minha nova história. Eu tinha tudo para estar morto. Mas comecei a crer de todo meu coração que Jesus faz milagres e acreditei que faria na minha vida. Sou um milagre de Deus”, frisou Rogério, que permaneceu em tratamento por nove meses, como se fosse a gestação de uma nova vida, a nova vida de Rogério.
Depois das cinzas, a reconstrução do lar
Faltavam cinco minutos para o relógio marcar meia-noite de 16 de novembro de 2017. Noite que nunca saiu da memória de Marlise Vieira de Souza e do marido Anilton Carvalho. Enquanto eles e os três filhos dormiam, o pequeno chalé na rua Afonso Mueller, no bairro Esmeralda, em Vera Cruz, começou a pegar fogo e em poucos instantes a família viu sua moradia, o lar onde compartilhavam as refeições, dormiam e se reuniam, se desvanecer até virar cinzas. “O fogo se espalhou rápido, tentamos apagar com baldes d’água, mas não havia o que fazer”, relembra Anilton.
O casal, que vivia no local há mais de 10 anos, e os filhos ganharam abrigo na casa em frente, onde mora o irmão de Marlise. Ao tentar dormir após o sinistro, ela lembra de deitar a cabeça no travesseiro e pensar “que a vida não seria mais a mesma daquele momento em diante”. Com o passar dos dias, produtos de higiene, roupas, móveis e materiais de construção chegaram de lugares diferentes, começando a reacender a esperança consumida pelas chamas. Marlise e Anilton relembram, emocionados, gestos de solidariedade dos alunos da Escola Mesquita, da comunidade vera-cruzense e o auxílio de outras cidades. Foi por meio destas inúmeras doações e pelas mãos de amigos e parentes que, no início de 2018, as primeiras paredes da nova casa foram erguidas. “Durante um mês, com a ajuda dos conhecidos, trabalhamos sem parar à noite e nos finais de semana para reconstruir nossa casa”, conta Anilton.
Ao entrar na moradia pela primeira vez, Marlise diz que o maior sentimento foi de alegria. Alegria por poder chamar aquele cantinho de lar, de ver a família ali reunida e por poder voltar a sorrir.
A fé que alfabetiza
Quando seu João passou a frequentar a igreja, admirava todos os que tinham a chance de ser chamados pelo pastor para ler a palavra no altar. Um ato tão simples, mas que parecia tão distante para o idoso, que nunca teve a oportunidade de aprender a ler ou escrever. Com a fé cada vez mais forte em seu coração, João Sebastião Nunes Cavalheiro – que também queria conseguir entender a Bíblia -, buscou a alfabetização.
Hoje, com 81 anos, ele é o aluno mais velho do Núcleo Municipal de Educação de Jovens e Adultos (Cemeja) de Santa Cruz do Sul, local que passou a frequentar em 2009. Duas vezes por semana, com a bengala em mãos, fica meia hora no ônibus que o leva do bairro Santa Vitória até o centro da cidade. Após aprender português, história, geografia e matemática, retorna para outros 30 minutos no coletivo e volta para casa com a certeza de que cada dia de estudo faz toda diferença em sua vida.
Quer ver a reportagem completa? Leia o Jornal Arauto deste fim de semana.
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