Mas há algo ainda mais profundo: ele entende que a gentileza não tem prazo de validade
Conheci o Márcio por intermédio da Fabi. Daquelas amigas que têm um dom quase místico de conhecer todo mundo. Mas todo mundo mesmo. Num dia qualquer, confessei a ela minha frustração: estava à procura de um bom cabeleireiro. “Bom” na acepção que vai além da técnica, do corte limpo, da tesoura afiada. Queria um mestre. Um artesão. Disse a ela que andava cansado dos barbeiros contemporâneos, especialistas em degradês que se repetem como uma linha de produção fordista. Parecem replicar em cada cliente a mesma fórmula mecânica, desprovida de singularidade. Eu queria voltar às raízes. Encontrar alguém que manuseasse a tesoura com a maestria de quem borda, como minha avó fazia com linha e agulha: sem alarde, mas com talento. E foi assim que o Márcio entrou na minha vida.
Márcio é simples. Deve ter uns 65 anos. Quando o vi pela primeira vez, ele puxou um banquinho e sentou-se ao meu lado. Não disse uma palavra. Apenas me olhou. Um olhar longo, profundo, como quem observa uma tela em branco e ainda hesita entre o colorido vibrante ou o preto e branco. Foram uns quatro minutos assim — e eu me senti não um cliente, mas uma espécie de projeto. Um protótipo a ser lapidado. Foi só depois disso que ele começou a cortar. Mas cortar não descreve o que ele fez. Ele pintou. Esboçou. Criou.
Sem nenhuma pressa, cada gesto parecia medido, calculado, mas ao mesmo tempo fluía como algo que nasceu para ser. Não sabia, até então, que aquele senhor discreto era um nome lendário na cena da moda paulista. Márcio foi, nos anos 2000, o mago por trás de cortes impecáveis de Gisele Bündchen, Luiza Brunet, Xuxa, Claudia Raia. E não só isso: por 12 anos, viveu entre Nova York e São Paulo, passando duas semanas em cada cidade, sustentado por uma clientela de russas que viam nele mais do que um cabeleireiro — talvez um confidente, um artesão da imagem. Durante esse período, alugou um apartamento em Manhattan, numa avenida tão cara que cada metro quadrado equivalia a um diamante lapidado.
E, ainda assim, Márcio é um homem de fala baixa. Olha nos olhos como quem quer fazer um novo amigo, não apenas um cliente. Há algo na sua simplicidade que desarma e conquista.
Quando terminei, olhei para o espelho e não me reconheci. O corte era mais do que bonito; era meu. Feito para mim, e não apenas em mim. Na saída, fiz uma foto. Não por vaidade, mas porque resgatar o amor-próprio é um gesto de sobrevivência. Viver sem isso é um tipo de morte — uma existência sem ânimo. E ânimo é, no fundo, a nossa razão.
Mas há algo em Márcio que preciso compartilhar: sua sensibilidade. Talvez isso seja o que o faz diferente. Tenho uma falha no cabelo, bem no centro da cabeça. A genética foi cruel e nenhum tratamento conseguiu resolver. Por mais que eu tenha aprendido a lidar com isso, ainda é um ponto sensível. Márcio percebeu isso na primeira sessão, e desde então, sem que eu peça, desvia da verdade. Toda vez que ele me mostra o corte na parte de trás, posiciona os espelhos de modo que as falhas desaparecem. Ele faz isso com uma delicadeza tão genuína que parece querer poupar meu coração de ver o que não preciso ver.
Márcio é mais do que um cabeleireiro. Ele é um editor da beleza. Um curador. Sua máxima parece ser aquela: o que os olhos não veem, o coração não sente. Mas há algo ainda mais profundo: ele entende que a gentileza não tem prazo de validade. Diferente de cortes de cabelo, que crescem, perdem a forma, desaparecem, a gentileza é atemporal. Ela fica. Como o gesto de ajustar um espelho.
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