É que, no fundo, todo mundo sonha em ser um pouco como ele. Teimoso com aquilo que acredita. Veloz porque a gente tem pressa de ser feliz
Eu sei que ele vai morrer. É inevitável, está escrito, como se toda grande história precisasse de um ponto final trágico para ser eterna. Eu sei disso, mas não consigo assistir ao último capítulo. Procrastino. Finjo que tenho outra coisa pra fazer. Eu não quero que ele morra. Não quero dizer adeus a um homem que eu sequer conheci, mas que, de algum jeito estranho e bonito, eu queria ser amigo.
A cada episódio, eu penso em voltar para o começo. Assistir de novo. Viver mais um pouco ao lado dele. Me inspirar mais, me emocionar mais, chorar quietinho mais uma vez — só pra prolongar a sensação de que ele está vivo. Porque enquanto eu não termino a série, ele está. Enquanto eu não vejo aquele último instante, Ayrton ainda é meu amigo imaginário, meu mentor secreto, o cara que faz parecer que a vida vale a pena mesmo quando o cronômetro corre contra você.
Eu queria ter vivido na época dele. Ter ligado a TV domingo de manhã e gritado junto. Ter discutido com alguém se aquela ultrapassagem foi limpa ou suja, se a chuva favoreceu ou atrapalhou. Queria ter feito parte de um país que parava para vê-lo, que acreditava por 90 minutos que podia vencer qualquer coisa porque ele estava lá na frente, como um escudo, um sonho coletivo com motor turbinado.
Eu queria conhecê-lo. Não só o ídolo, mas o homem. O cara que ria meio torto, que chamava a Xuxa de “meu amor”, que tinha o olhar de quem acreditava no impossível. Queria ser amigo dele, ouvi-lo reclamar da vida, falar dos planos, da vontade de ser ainda mais rápido, de fazer a diferença.
Ayrton não morreu pra mim porque, enquanto eu não assisto ao último capítulo, ele ainda está vivo. Vivo na curva que desafia a física, no sorriso que abre a câmera lenta, na coragem de dizer não às regras que não fazem sentido. Vivo dentro de mim, como um ideal.
E talvez seja isso o que me emociona tanto. Não é só que ele era bonito, teimoso, veloz. É que, no fundo, todo mundo sonha em ser um pouco como Ayrton Senna. Teimoso com aquilo que acredita. Desaforado porque sabe que o mundo não é justo. Veloz porque a gente tem pressa de ser feliz. Resiliente porque a vida derruba mais do que premia.
Talvez eu termine a série neste sábado. Ou talvez volte para o início mais uma vez, porque ainda não estou pronto para dizer adeus. Ayrton, para mim, ainda está correndo.
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