Esses dias, no Dia de Finados, me deparei com uma cena curiosa no cemitério. Lá estavam elas, lado a lado, como dois pilares sustentando um túmulo em comum
João e Dolores se casaram numa tarde que parecia ter sido pintada à mão. O céu carregava o azul exato de quem abençoa começos. A Vila Esmeralda estava em festa, como se todos ali precisassem testemunhar um amor quase celeste. Todos, menos Rosângela, que assistia de longe, escondida atrás das próprias lágrimas. Ela tinha 13 anos e um coração que pulsava forte demais para caber na infância. Amava João com a intensidade de quem ainda não entendeu que certos amores não pedem licença — mas também não deixam nada além de destroços.
Ela o amava como se ama aos 13: sem medidas, sem lógica, sem futuro. João era um sargento, 25 anos, músculos de uniforme e um sorriso que hipnotizava Dolores. Ela era a mulher mais desejada da vila, e Rosângela sabia que, com ela no caminho, sua paixão bandida era só um devaneio de menina. Mas o tempo, esse caprichoso, gosta de dar nó em história bem alinhada.
Cinco anos depois, Dolores deu a João um filho. Marcelinho nasceu corpulento, cabeludo, chorando com energia e saúde. Dolores, ainda exausta de tantas noites sem dormir, acreditava que o amor agora ganharia um sobrenome: família. João, no entanto, era um homem com fome de mundo. Não bastava um filho, uma mulher. O desejo carnal gritava, e, numa dessas noites em que foi à caçada da carne mundana, ele foi ao encontro do que sentia faltar.
E quem estava à espera? Rosângela, claro. Agora com 18 anos, cabelos longos, esguia, bem acinturada e olhos esfomeados de prazer. Ela realizou o sonho de menina: deitou-se com João. Mas sonhos, quando realizados, costumam ser mais pesados do que pareciam na imaginação. Rosângela queria mais. Queria João todo para ela. Queria amor com nome, sobrenome e endereço fixo. Mas João era um homem de migalhas.
Ele a amou, sim, do jeito que um homem dividido ama: pela metade. Construiu uma casa para ela, teve dois filhos, mas jamais deixou Dolores. Dolores sabia. Sabia de tudo. Sabia das escapadas, dos sorrisos roubados, da casa escondida. Sabia e calava. Não por falta de coragem, mas por excesso de dependência. Chorava à noite, não pela traição, mas pela fraqueza que via no próprio reflexo.
E então João morreu. Não foi devagar, como em novela, mas num golpe só, um infarto fulminante. Dolores, que passou a vida dividindo João, decidiu que agora ele seria só dela. Ordenou segredo absoluto. Rosângela não deveria saber. Pelo menos na morte, João pertenceria à mulher que nunca o deixou.
Mas o segredo, como João, também tinha suas escapadas. Uma amiga, talvez movida por um senso de justiça torto, deixou um bilhete sob a porta de Rosângela: “João morreu. Velório hoje.” Só isso. E bastou.
Rosângela foi. Levou os filhos que teve com João, dois meninos já criados, com os olhos verdes encharcados. Ela entrou no velório com a intensidade de um trovão. Ajoelhou-se diante do caixão e gritou: “Amor da minha vida!” Chorou como quem esperava que o mundo entendesse a história do lado dela. Dolores, ao lado do corpo, observou tudo em silêncio, mas o silêncio não durou.
Marcelinho, agora homem feito, explodiu. “Você tem coragem de aparecer aqui?” Ele gritou, com a voz trêmula de dor e raiva. Avançou na direção de Rosângela, apontando o dedo como uma flecha que queria atingir o alvo. “Minha mãe suportou tudo calada, e você? Você destruiu nossa família!”
Rosângela tentou responder, mas as palavras se perderam na garganta. O caos tomou conta da capela. Marcelinho estava prestes a ir além — um empurrão, talvez algo pior — quando dois primos o seguraram pelos braços e o arrastaram para fora. “Vamos embora, Marcelinho, isso não é lugar para isso,” um deles disse. Ele resistiu, mas foi levado, gritando: “Ele não merecia nenhuma de vocês! Nenhuma!”
Dentro da capela, um silêncio pesado voltou a pairar. Dolores, que havia assistido à cena com os olhos cheios d’água, ergueu os olhos para o teto da capela, como quem conversa diretamente com o céu, e soltou:
“Jesus, eu não mereço. Até aqui, Senhor? Esse homem me dá trabalho até morto!”
O riso começou baixinho, contido, mas logo dominou a capela. Até Rosângela, entre lágrimas, deu um sorriso amargo. Dolores virou-se e voltou ao seu canto. Pela primeira vez, sentiu-se leve. O espetáculo havia acabado, e ela finalmente era livre. Ou não!
Esses dias, no Dia de Finados, me deparei com uma cena curiosa no cemitério municipal. Lá estavam Dolores e Rosângela, lado a lado, como dois pilares sustentando um túmulo em comum. Cada uma trazia flores, velas e memórias para o mesmo homem, mas nenhum olhar cruzado. Dolores ajeitava as rosas brancas, enquanto Rosângela acendia uma vela que insistia em apagar. Por um instante, parecia que ambas dialogavam, mas não entre si — talvez com João, talvez com suas próprias dores.
Até que a morte os separe, quem disse?
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