Colunista

Lucas Dalfrancis

Vida de Lupa

O bordel do Bairro Bom Jesus

Publicado em: 14 de dezembro de 2024 às 10:12
compartilhe essa matéria

A Rainha da Noite me ofereceu uma Fanta uva e um pacote de bolachas. E foi assim que aprendi que o mundo da Zona tinha suas próprias regras

Na nossa vilinha esquecida, lá no Bairro Bom Jesus, havia duas certezas: a rotina pacata das senhoras casadas, que regavam as flores e observavam a vida pela janela, e o rebuliço da Casa das Damas da Noite, que parecia estar sempre à margem da nossa moral, mas no centro das nossas conversas. O casarão chamava-se “Dois Corações”, um nome que parecia destoar da função, mas que carregava o tipo de ironia que só quem vive na encruzilhada entre o sagrado e o profano consegue entender.

Dali da janela do meu quarto, eu tinha a melhor vista do espetáculo. Para um menino de oito anos, aquilo era cinema em casa, uma temporada de escândalos e risos que começava pontualmente ao cair da noite. O casarão era movimentado: mulheres belas, perfumadas, de saias curtas, recebiam homens que vinham com desejos em mãos e 150 reais no bolso. Para mim, naquela idade, tudo isso era apenas um detalhe do que acontecia na Zona, porque o que realmente importava eram as cenas, os barracos e os gritos que animavam nossas madrugadas.

Foi numa dessas noites que Verena, uma das figuras mais destemidas da vila, protagonizou o maior espetáculo que o “Dois Corações” já viu. Ela apareceu na frente do bordel, aos gritos:

— João Pedro, safado, teus filhos estão em casa e tu aqui na Zona! Sai já daí!

Enquanto ela bradava pela calçada, as damas, lá do alto da sacada, davam risadas que ecoavam como sinos profanos. Diziam que João Pedro estava muito ocupado. Talvez com as mãos, talvez com o corpo, mas ocupado demais para atender à esposa traída.

Eu, escondido atrás das frestas da janela, assistia à cena como se fosse um capítulo ao vivo de uma novela que ninguém tinha coragem de admitir que acompanhava.

Verena exigia respeito; João Pedro era a encarnação do silêncio covarde; e as damas, bem maquiadas e cheias de frases de efeito, pareciam divertir-se com o caos como quem ri para esquecer a própria tristeza.

Depois de tantos escândalos, a Rainha da Noite — a dona do bordel — decidiu contratar um segurança para evitar novos barracos. Ele era um homem grande e parrudo, com cara de poucos amigos, mas as marcas de unhas pelo rosto entregavam que seu papel ali era muito mais do que guardar a porta. Era o muro humano entre os homens traidores, as esposas furiosas e as damas maquiadas. Para mim, no entanto, ele era mais que um segurança. Ele era o guardião do Bairro Bom Jesus, alguém que, mesmo apanhando tanto, me fazia sentir seguro para dormir o sono dos inocentes.

O bordel era a pedra no sapato moral da vila. Tanto que até a santa do bairro — aquela que visitava casa por casa, levada como numa procissão domiciliar — jamais passava pelo “Dois Corações”. Diziam que seria um desaforo. Mas foi a visita de uma santa diferente que mudou minha vida: certa noite, um cano do bordel estourou, e as damas bateram à nossa porta. Pediram ajuda ao meu pai para o conserto, e minha mãe, desconfiada por demais, mandou que eu fosse junto, como fiscal da moral. E foi assim que entrei, pela primeira vez, no “Dois Corações”.

A entrada no bordel foi um evento. As mulheres nos receberam com sorrisos tão largos que até os dentes pareciam pintados de vermelho. O cheiro era uma mistura de perfume barato, cigarro e algo que eu só entenderia anos depois. Meu pai consertava o cano enquanto eu, sentado num sofá de veludo gasto, observava tudo como quem descobre um novo planeta. A Rainha da Noite me ofereceu uma Fanta uva e um pacote de bolachas. E foi assim, com uma bebida gelada nas mãos e o olhar de um menino curioso, que aprendi que o mundo da Zona tinha suas próprias regras.

Quando voltamos para casa, minha mãe perguntou como tinha sido. Eu, ainda com o gosto de bolacha e refrigerante na boca, respondi:
— Foi incrível! Tem sofá vermelho, cheiro diferente e até lanche!

E ela, sem entender, me mandou lavar a boca com água benta.