Hoje, o menino que dividia um xis comigo viaja o mundo ao meu lado. Ele acredita que, se continuarmos de mãos dadas, alcançamos o topo da montanha
Aos 30 e poucos, eu descobri que o amor não é mais sobre o que eu quero. É sobre o que eu aguento. Aos 20, o amor era um fogaréu, uma urgência, um bilhete rabiscado com o coração na boca. Aos 18, eu achava que o amor cabia numa música do Legião, numa camiseta com cheiro de amaciante ou numa troca de senhas de e-mail.
Não quero mais rotular o amor. Isso é preguiça de sentir. Quem somos nós para decidir o que era amor e o que foi só um tropeço? O amor não precisa do nosso carimbo para existir. Ele é livre, bagunçado, sem CPF. Tudo pode ser amor: a paixão que durou três meses, o beijo no portão, o sexo urgente naquele carnaval. Quem ama pouco é que tenta organizar o amor em gavetas.
O amor muda porque a gente muda. A idade desafina a gente. O corpo racha e não volta mais ao estado original. A beleza despenca e cai no chão da vida. O que era importante vira detalhe. E aí, o amor nos força a trocar de lente, a mudar o grau. Amamos com óculos novos.
Primeiro vem o amor da carne. É a fome que não se sacia. É dormir com o corpo do outro tatuado na pele. É o tesão que desafia o relógio. Não tem fim, só intervalos. Quem abre mão disso? Ninguém! O amor da carne é a vida nos dando uma prova de que existimos.
Depois vem o amor do cheiro. É aquele pescoço que vira lar. Você encosta o queixo e fica. Não é o perfume, é o cheiro cru, de pele, de humano. O cheiro que dá saudade de coisas que você nem viveu ainda.
E, de repente, chega o amor dos olhos. Amar com os olhos é quando você não precisa falar mais nada. É ler o outro, mesmo quando ele tenta se esconder. Amar com os olhos é confiar. E confiança, meu amigo, é coisa séria. Quem mais você deixa dormir ao seu lado?
E por último, o amor dos sonhos. Esse é o mais bonito. É quando você para de olhar para si e começa a olhar para o “nós”. O amor que faz planos, que tropeça junto e se levanta rindo. É o amor que te completa não porque faltava algo, mas porque sobra.
Eu e Thiago vivemos tudo isso. E não vou guardar essa história só para mim. Não seria justo.
Ele estava desempregado quando nos conhecemos. Eu, recém-formado, pagava as contas e faltava até para mercado. O nosso luxo era dividir um xis e uma Coca. E aquilo era amor: o sabor do bacon e do sacrifício.
Quando cortavam a luz do meu quitinete, eu ia para a casa da minha sogra tomar banho. Humilhante? Talvez. Mas ríamos. Ríamos porque o amor é a capacidade de transformar o trágico em pura felicidade.
Fomos para Capão da Canoa uma vez. Thiago tinha amigos abastados que jantavam em restaurantes chiques e sempre nos convidavam. Nós recusávamos, dizendo que já havíamos comido. Era mentira, claro. Combinávamos de pedir apenas um drinque — e nada acima de R$ 30 reais. Sobrevivíamos assim, cúmplices.
Na mesma viagem, precisávamos comprar as passagens de volta para Porto Alegre. Andamos quase uma hora sob um sol de 40 graus até a rodoviária. Eu, polaco, acabei com insolação. Táxi? Nem cogitávamos. Esse era um luxo que não cabia no nosso bolso.
Quando tive que devolver o meu apertado apartamento e morar com a minha sogra, dormi no chão. Foi ali que o cachorro dele virou meu. Ele se aninhava comigo no colchão improvisado, e eu chamava isso de amor. O que ficou daqueles dois anos? A saudade do bolo de milho da minha sogra. O melhor do mundo.
Amar alguém é viver os perrengues, as ausências, os vazios. É transformar o pouco em suficiente. Amar é sonhar, mas também caminhar no chão quente e suportar o peso da mochila.
Hoje, o menino que dividia um xis comigo viaja o mundo ao meu lado. O que me emprestava um colchão é meu sócio. Ele ainda acredita que, se continuarmos de mãos dadas, alcançamos o topo da montanha.
Porque o amor dos sonhos não é sobre sonhar. É sobre acreditar.
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