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Lucas Dalfrancis

Vida de Lupa

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Pecadores pelo sangue

Publicado em: 05 de janeiro de 2025 às 20:20
Foto: Lucas Dalfrancis
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Anne nunca viu o mundo pelo qual sonhou. Mas seu diário nos conta o que é viver com a liberdade estrangulada

Foto: Lucas Dalfrancis

Com os olhos cheios d’água, atravessei o anexo. Não era só o peso das lágrimas, mas o peso de sentir o que restou daquelas vidas estraçalhadas por um ódio que via pecado no próprio sangue. Ali, naquele esconderijo asfixiante, Anne Frank e sua família foram condenados a sobreviver como dejetos. Cada passo rangia, e o chão parecia queixoso, como se dissesse: “Eles estavam aqui.”

Os cômodos eram escuros porque as janelas foram trancadas à força. Nem sol, nem lua, nem estrelas. Nem um assovio de vento para lembrar que lá fora ainda havia vida. Não podiam ver o mundo, e o mundo não podia vê-los. Era como se tivessem sido apagados sem que ainda estivessem mortos.

Nas paredes, as fotografias da família. Tentativas frágeis de costurar a felicidade no tecido rasgado da tristeza. Olhei os rostos congelados em um tempo que não existia mais. Não eram lembranças, eram trincheiras. Pequenos sorrisos pendurados como escudos contra o vil desespero.

Atravessei a portinhola do esconderijo, um vão pequeno e sombrio escondido atrás de uma estante de livros. Sob um mapa-múndi, ironicamente, o acesso ao mundo mais limitado que poderia existir. Uma parede falsa. Não era ficção. Era terror. Um covil que escondia mais do que pessoas. Escondia a humanidade.

Meus olhos esbarraram nos rabiscos de Anne. Folhas amareladas com linhas azuis, escritas em uma caligrafia que parecia não só perfeita, mas também determinada. Cada letra era um grito, um pedido de socorro feito com a paciência de quem sabia que o tempo precisava ser preenchido, mesmo no vazio. Talvez Anne soubesse. Talvez ela pressentisse que aqueles rabiscos atravessariam séculos para ser a consciência de um mundo inteiro.

Vi a privada. O sanitário que não podia ser usado durante o dia, porque até um som tão comum como o da descarga podia ser a diferença entre viver ou morrer. Havia regras até para o silêncio. Não era só uma casa. Era uma cela sem grades visíveis, mas cercada por uma caçada voraz que corria com fome para devorar vidas judias.

Anne queria ser jornalista. E talvez isso me doesse mais. Ela queria contar histórias. Queria escrever sobre o mundo. Ela escreveu, mas não como queria. Escreveu porque o mundo a fez prisioneira. Em vez de narrar os acontecimentos da Europa, narrou o cerco que a sufocava. Seu diário é mais do que um livro. É uma cicatriz aberta, uma lição que dói, um pedaço de liberdade rasgado e costurado por mãos que não queriam desistir de sonhar.

Saí do anexo de Anne carregando o eco daquelas mortes. Elas ficam no coração da gente. Estou carregando a ferida aberta de um tempo que deveria ter ficado para trás, mas que insiste em atravessar os nossos dias. O Holocausto não morreu nos campos. Ele sobrevive nos gestos pequenos e diários de intolerância. Ele ressurge quando a democracia é ferida por paixões cegas e o outro é sentenciado como inimigo.

Anne nunca viu o mundo pelo qual sonhou. Mas seu diário nos conta o que é viver com a liberdade estrangulada. É um grito que ecoa para sempre. Que não silencia. Quando a democracia lhe ferir, quando a indiferença sussurrar, quando o preconceito encontrar novas formas de se esconder, lembre-se deste cárcere onde até o próprio sangue era um pecado de morte. Lembre-se de Anne. E escolha o futuro.