Colunista

Moacir Leopoldo Haeser

Aberratio Ictus

Publicado em: 29 de abril de 2025 às 08:07
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É a expressão jurídica em latim que indica situações em que o autor erra o alvo, atingindo pessoa diversa, ou ambas

Nos últimos anos, principalmente após a transmissão ao vivo de sessões do Supremo Tribunal Federal (STF), o brasileiro está se tornando quase um especialista em direito. É difícil para o leigo entender muitas das decisões, ainda mais quando divergem os ministros em sua fundamentação ou quando as penas, por manifestações públicas que ocorriam corriqueiramente, são tão exacerbadas.

Quebra-quebra, protestos, bloqueio de estradas e invasões nem são tão estranhas ao brasileiro. Lembro da degola de um policial militar próximo à Praça da Matriz, na Capital, e até de uma vaca enfiada à força no elevador de uma das Secretarias de Estado, no Centro Administrativo.

Manifestação nacional, que culminou em Brasilia, com a invasão e depredação a prédios públicos, acabou redundando em até dezessete anos de prisão. Esta semana a divergência é sobre a pena atribuída a uma cabeleireira que escreveu a frase do Presidente do STF na estátua da justiça: “perdeu, mané”.

A Procuradoria-Geral da República (PGR) atribuiu cinco crimes à cabeleireira – golpe de Estado, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, associação criminosa armada, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado.

Difícil extrair, de uma só conduta, o enquadramento em tantas disposições legais, sem que incorra em ilegal dupla punição pelo mesmo fato. Como previsto, o voto do Ministro Luiz Fux pune apenas pela deterioração de patrimônio tombado, aplicando a pena de um ano e seis meses de reclusão.

Às vezes o agente quer praticar um fato e não se dá conta de sua gravidade, ou quer praticar uma conduta aparentemente inocente e acaba ocasionando um resultado gravíssimo, como no caso da Boate Kiss, em Santa Maria.

Ninguém causa um acidente de trânsito de propósito, mas nem por isso deixa de ser punido criminalmente pela imprudência, negligência ou imperícia. Se assume o risco, como em um pega de veículos, responde a título de dolo.

Muitas vezes o resultado vai além da intenção: dá um soco e a pessoa cai, bate a cabeça e morre.

Outras vezes, o resultado ocorre completamente fora do previsto. Atinge pessoa que jamais imaginara.

Lembro de meu primeiro júri, em que uma senhora idosa era acusada de ter colocado veneno na marmita do marido. Este saiu para trabalhar e, no caminho, encontrou um vizinho que convidou-o a participar de um pixurum na construção de um galpão, quando carneariam um cabrito.

Na hora do almoço a comida foi dividida entre os trabalhadores, que notaram um gosto estranho. Jogada pela janela, logo as galinhas e o cachorro sucumbiram. Levados para o hospital, todos se salvaram, graças à divisão da comida envenenada.

Completamente fora da previsão, portanto, o atingimento daqueles trabalhadores.

Aberratio ictus – erro de execução – é a expressão jurídica em latim que indica situações em que o autor erra o alvo, atingindo pessoa diversa, ou ambas.

Algumas vezes o crime é meio para a prática de outro crime, como o porte ilegal de arma para o homicídio ou, por sua abrangência, o crime mais leve – lesões corporais – é subsumido pelo crime mais grave – homicídio. Em ambos os casos a punição será apenas pelo crime mais grave.

Nessa ótica, difícil sustentar a juridicidade do enquadramento, para exacerbação das penas, de uma mesma e única conduta, em uma série de tipos penais semelhantes. Ora, a teoria finalista da ação, adotada pelo nosso Código Penal desde a reforma de 1984, tem o dolo e a culpa apenas como tipificadores do delito, não tendo mais o conteúdo de reprovação. Examina-se qual o fim visado pelo agente e este só deve responder “na medida de sua culpabilidade”.

  1. A idosa foi absolvida pelo Júri por haver dúvida se havia sido ela, ou outro familiar, desafeto da vítima, que colocara o veneno na marmita do marido.