Colunista

Eduardo Wachholtz

Festa das emendas: você não foi convidado

Publicado em: 25 de fevereiro de 2025 às 12:51
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Temos visto uma mobilização de municípios em direção à capital federal para solicitação de recursos para obras e implantação de serviços

Emendafest. Talvez essa tenha sido a palavra mais destacada pelos veículos de comunicação do Vale do Rio Pardo nos últimos dias. Uma operação deflagrada pela Polícia Federal expôs uma investigação conduzida em sigilo sobre um possível esquema de desvio de recursos públicos, corrupção ativa e passiva, a partir de emendas parlamentares destinadas ao Hospital Ana Nery. O trabalho na casa de saúde de Santa Cruz do Sul, em outros municípios gaúchos e em Brasília teve autorização de Flávio Dino, ministro que vem atuando de forma intensa para garantir transparência nas emendas parlamentares.

A ação da Polícia Federal na região teve como foco justamente essa forma de repasse dos parlamentares presentes no Congresso Nacional. Antes de detalhar a motivação do trabalho dos agentes, talvez seja interessante entender o funcionamento das emendas. De forma resumida, são instrumentos do Legislativo para indicar a alocação de recursos públicos em determinadas localidades e áreas temáticas de preferência dos parlamentares. Essa participação se fortaleceu especialmente em 2015, depois que uma emenda constitucional transformou o caráter autorizativo das emendas individuais em impositivo e, desde então, há obrigatoriedade da execução orçamentária por parte do Poder Executivo.

Na Operação Emendafest, o foco do trabalho está no possível desvio. Um documento presente no processo indica que 6% do valor das emendas destinadas ao Hospital Ana Nery seria repassado a uma suposta empresa de captação. Para a PF, essa empresa pertenceria a um lobista já investigado por outros delitos. Segundo as apurações, o dinheiro inicialmente seria destinado a outros municípios. No entanto, em virtude dessa intermediação e conforme confirmação da porcentagem por um funcionário da casa de saúde, o recurso teria mudado de destino e chegado a Santa Cruz. Durante o trabalho, mais de R$ 350 mil em espécie foram apreendidos nas residências de investigados.

As apurações da Polícia Federal e de outros órgãos envolvidos continuam e devem ser respeitados os direitos de ampla defesa e contraditório dos investigados. O objetivo não é fazer nenhum tipo de juízo sobre o que pode ter ocorrido, mas aproveitar o episódio para colocar em debate alguns pontos sobre o orçamento impositivo. A primeira reflexão que pode ser feita é sobre as competências de cada um dos poderes estabelecidos. Como os próprios nomes já sugerem, o Legislativo é responsável por criar normas e fiscalizar, o Executivo, em linhas gerais, administra e o Judiciário resolve conflitos entre cidadãos, entidades e o Estado.

Imagine que você é um assistente administrativo em uma empresa da região, mas constantemente precisa realizar tarefas de atendente de recepção, como atender telefonemas, receber clientes e agendar reuniões, sem que essas atividades estejam descritas em seu contrato de trabalho ou sem receber por isso. Isso é chamado de desvio de função e pode gerar direito a uma revisão salarial ou até mesmo a uma ação trabalhista. Se isso é condenado na esfera privada, o mesmo raciocínio poderia ser aplicado aos três poderes. Uma das preocupações levantadas é que, com as emendas impositivas, os parlamentares possam perder o foco e não dar a devida atenção ao que deveria ser prioritário: a fiscalização e a legislação.

Outro ponto de reflexão é o valor disponível para cada um dos 513 deputados federais. Em 2025, cada um deles terá R$ 37,3 milhões para emendas individuais. Para efeitos de comparação, o Vale do Rio Pardo recebeu, no ano passado, R$ 2,5 milhões com a Consulta Popular – processo anual de participação direta da população gaúcha em que os cidadãos votam para definir prioridades de interesse regional que receberão recursos do orçamento estadual. Ou seja, mais de 16 mil pessoas participaram e votaram, presencialmente ou de forma digital, na iniciativa que recebeu quase 15 vezes menos do que um deputado federal tem disponível.

O destino dos recursos é outra questão que merece análise. Quais são os critérios utilizados pelos políticos presentes no Congresso Nacional? Eles buscam algum tipo de assessoramento técnico? O que temos visto é uma mobilização de municípios em direção à capital federal para solicitação de recursos para obras e implantação de serviços. Essa dinâmica, em que o acesso aos valores depende da capacidade de mobilização, pode perpetuar desigualdades e favorecer grupos mais organizados ou com maior influência política, em detrimento daqueles que já enfrentam dificuldades de acesso. O risco é o fortalecimento de um sistema em que apenas os grupos mais mobilizados politicamente são beneficiados.

O valor que cada parlamentar tem disponível varia e depende do orçamento global. Entretanto, desconsiderando os aspectos mais técnicos e supondo que o valor de 2025 se mantenha durante todo o mandato, ao longo dos quatro anos em Brasília, um deputado federal terá disponível quase R$ 150 milhões. O número impressiona e levanta preocupações sobre a dificuldade de renovação no Congresso Nacional. Se bem aproveitado, o montante pode servir para impulsionar a imagem do político com foco nas eleições futuras. Entrevistas sobre a destinação dos recursos, participação em eventos de inauguração e publicações nas redes sociais são algumas das ferramentas utilizadas pelos parlamentares.

O assunto é extenso e poderia render mais algumas dezenas de parágrafos, mas o objetivo é provocar reflexões e, quem sabe, motivar a busca por mais informações sobre o tema. Na semana que vem, as emendas impositivas dos vereadores serão detalhadas. Desde a promulgação da medida em nível federal, municípios brasileiros, inclusive no Vale do Rio Pardo, estão utilizando esse instrumento. Em entrevistas com vereadores e secretários dessas localidades que contam com orçamento impositivo, são relatados pontos positivos e negativos. Tudo isso também será ampliado no comentário semanal do programa Direto ao Ponto, da Arauto News 89,9 FM, na próxima terça-feira, das 9h até 11h.