Colunista

Paola Severo

Retalhos de poesia

Ossos que contam histórias

Publicado em: 11 de abril de 2024 às 17:31 Atualizado em: 10 de maio de 2024 às 13:12
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Apesar de ser uma noção um tanto quanto mórbida, nós, seres humanos, podemos ser identificados por características dos nossos ossos. Essa é uma verdade que aprendi recentemente durante a leitura de Ossos do Ofício, de Sue Black (Editora Darkside Books, 272 páginas). Ainda que eu espere que isso nunca seja necessário no meu caso, e também no seu, caro leitor, fato é que essa parte tão vital da nossa anatomia acaba passando despercebida na maior parte do tempo, salvo no caso de alguma dor, lesão ou fratura. Mas no mundo criminal, muitas vezes a única parte de um corpo que os peritos e policiais têm para desvendar um possível crime são os ossos. Daí surge essa área de estudo tão peculiar e tão útil, quando todos os outros aspectos de uma investigação foram esgotados.

É aí que entra o trabalho de Sue Black, uma das principais anatomistas e antropólogas forenses do mundo, com décadas de experiência neste trabalho um tanto macabro, mas tão necessário para solucionar diversos casos. Além de atuar em casos de polícia, como homicídios e desaparecimentos por toda a Europa, foi a antropóloga-chefe da Equipe Forense Britânica nas investigações de crimes de guerra no Kosovo, além de ter sido uma das primeiras cientistas forenses a viajar para a Tailândia depois do tsunami em 2004 no Oceano Índico para oferecer assistência na identificação dos mortos.

Para alguém que trabalha tão intimamente com a morte, seu trabalho e sua escrita são bastante vivazes. Na obra que retrata sua trajetória na antropologia forense, ela divide os capítulos pelas partes do corpo, como o crânio, as cinturas, a garganta, os membros, mãos e pés, dando as características destes ossos ao longo da vida de cada pessoa (por exemplo, as fusões ósseas que ocorrem na infância e adolescência para determinar a idade exata de alguém) e relembrando casos que foram desvendados por conta de um detalhe em um dos ossos, às vezes apenas por um pequeno fragmento. Tudo com riqueza de detalhes, termos técnicos, mas ainda muito acessível mesmo para quem nunca estudou anatomia.

Muitas de suas histórias são chocantes, recordando casos brutais com descrições vívidas, mas ao mesmo tempo deixam bem claro a qualidade do trabalho executado por esses profissionais. Função da qual, para ser sincera, eu nem sabia direito da existência antes da leitura, a não ser pela ficção, em episódios da série Bones.

A investigação forense felizmente passou por diversos avanços nos últimos anos, e segue evoluindo, para que os crimes sejam desvendados cada vez mais rápido e os responsáveis, punidos pela Justiça. Ler este livro é se colocar no lugar de um desses investigadores, tentar entender como é para eles lidar com a morte tão de perto e ainda assim encontrar uma forma de buscar a excelência em seu campo.

Para quem se interessa por leituras que envolvem os chamados crimes reais, este livro é um respiro de ar fresco. Não há sensacionalismo, exploração da dor e do sofrimento das vítimas e suas famílias. Existe apenas o tratamento respeitoso de uma profissional e o foco no trabalho das pessoas que atuam com alguns dos aspectos mais difíceis de nossa sociedade.

A autora aborda sentimentos que são universais, suas histórias apelam ao que é humano dentro de nós, relembram sentimentos guardados e histórias similares das que já ouvimos. Tudo descrevendo as características dos ossos, as diferenças entre as ossadas de homens e mulheres e de indivíduos de diferentes idades. Não é uma tarefa fácil.

Sue Black é uma senhora simpática de 62 anos, cujos olhos já viram muito do pior que o ser humano é capaz, mas ainda assim ela consegue abordar essas histórias de forma objetiva, mas sem a frieza das mesas de necrotério. A graça e a doçura com que ela relata cada passo de suas pesquisas são encantadores. E a gentileza com que trata cada um dos sujeitos em sua narrativa, nos mostra como somos todos, apenas humanos. Sem julgamentos, a cientista aponta duas verdades inevitáveis: todos nós vamos morrer, e os nossos ossos contarão muitas histórias sobre quem somos e a vida que levamos.