Mensagem do dia

As pedras na boca diante do mar

Publicado em: 06 de novembro de 2023 às 08:32 Atualizado em: 06 de março de 2024 às 11:48
65e88237e98af.jpg
compartilhe essa matéria

Você acredita mesmo que pode desistir de um sonho?

Disponível também em:

Você acredita mesmo que pode desistir de um sonho? 
Ele volta, sempre volta. Para o sonho, não há tempo. O tempo unicamente transcorre para o sonhador. 
Ao cabo de décadas, seu sonho não terá envelhecido, só você. O sonho estará com o rosto intacto da primeira vez em que foi sonhado. 
Ele se mantém com a feição preservada desde que surgiu. 
Sua vitalidade se encontra nele. Sua gana de tentar. 
Se você para de sonhar, você desiste de tudo, não apenas do seu sonho. 
Ele é o alicerce de sua personalidade, de sua insistência, de sua teimosia. 
O sonho é necessidade mais do que uma opção, é dor sarada, é cicatriz da superação.
Emerge de experiências amargas, por ter sido subestimado e inferiorizado um dia. O sonho é um sim que atravessou inúmeras negativas. 
Você tem um dom porque sofreu por ele, e decide exercê-lo para que ninguém mais sofra como você. 
Já vi pessoas convictas de que poderiam enganar seus projetos. Trocaram de profissão, fingindo que não se importavam em fazer aquilo de que não gostavam. 
O disfarce não dura muito. Após alguns anos, você vai encontrar um jeito de retomar seu sonho. Casamentos terminam quando não há espaço para seu sonho. Cidades encolhem quando não há espaço para seu sonho. Não estar com ele é o equivalente a ter todas as suas roupas numa mala. Sem cabides, sem gavetas, não existe como definir o que realmente tem disponível dentro de si. 
Quando criança, a escola avisou aos meus pais que eu não desfrutaria de condições de ler e escrever, que sofria de deficiência intelectual. Além das dificuldades de aprendizado, eu não conseguia falar direito. Acumulava graves problemas de dicção. Trocava as palavras, gaguejava, não emitia o “r”, minha pronúncia saía falhada como se eu fosse um eterno bebê. 
Teria motivos de sobra para me esconder numa timidez cadavérica, sombria, calando-me para evitar constrangimentos e zombaria. 
Mas minha mãe me contou a história de Demóstenes (384 a.C—322 a.C.), e seu exemplo mudou o meu ânimo, a minha alma. 
Demóstenes era terrivelmente ridicularizado pela gagueira. Ele enfrentou o problema declamando poemas contra o forte vento na praia, a cada amanhecer. Se ele errava, corria quilômetros a fio. Aplicava o castigo físico para ensinar o seu corpo a acertar. 
Quando já transpunha sua limitação, passou a colocar pedras na boca para ler diante do barulho das ondas. Ele tinha que se ouvir apesar do rugido ensurdecedor do mar. 
Depois de um treinamento solitário, que consumiu a sua adolescência, Demóstenes se tornou o maior orador da Grécia. 
Se hoje eu falo na rádio e na televisão, se hoje eu sou escritor, se hoje parece que nunca errei, é que eu devo tudo a Demóstenes. Assim como Demóstenes devia tudo a Calístrato, tribuno invencível que ele testemunhara quando garoto. 
Somos espelhos do que escutamos na infância. 
O que eu descobri: as adversidades são enviadas pelo próprio sonho, para que estejamos preparados para cumpri-lo. Por isso que alguns sonhos demoram a acontecer. Acontecem quando estamos prontos para eles. 
Nós até podemos desistir de nossos sonhos, mas nossos sonhos jamais desistem de nós.

Fabrício Carpinejar