Geral

SCB União completa 100 anos de resistência e cultura negra

Publicado em: 30 de junho de 2023 às 08:15 Atualizado em: 14 de maio de 2024 às 08:01
  • Por
    Paola Severo
  • Fonte
    Jornal Arauto
  • compartilhe essa matéria

    Comemorando seu centenário neste fim de semana, o Uniãozinho se destaca como um dos mais antigo clubes sociais negros ainda em atividade no Estado

    Fundada em 1º de julho de 1923, a Sociedade Cultural e Beneficente (SCB) União, de Santa Cruz do Sul, conquistou um feito que poucas entidades podem celebrar: chegar aos 100 anos. Comemorando seu centenário neste fim de semana, o Uniãozinho se destaca como um dos mais antigo clubes sociais negros ainda em atividade no Estado. Historicamente havia segregação e as famílias negras eram impedidas de frequentar os clubes brancos. Por esta razão, formavam seus próprios espaços seguros de socialização, para difundir o esporte, o lazer, a cultura e a arte. O entorno do clube mudou, mas o União assegura seu legado de resistência e negritude, que é orgulho para o município e a região

    A Rua Júlio de Castilhos em frente à sede da Sociedade Cultural e Beneficente (SCB) União mudou muito no último século. A estrada de chão virou rua calçada, que virou asfalto. A sanga, que passava ao lado, foi canalizada. A periferia se tornou área nobre da cidade e a maioria das famílias negras já não moram mais por ali. Até mesmo o prédio, que hoje se destaca pintado de azul foi um dia construído pelas mãos de quem doou sua força de trabalho para que a comunidade pudesse desfrutar de um espaço de convivência e acolhimento, longe da discriminação e do racismo que reinavam na cena social branca.

    Parte da história do clube foi contada no documentário Pérola Negra: 90 anos de História da SCB União, lançado em 2018. E agora, o União é também objeto de uma pesquisa que levanta fontes  históricas, orais, fotográficas e documentais que farão parte de uma exposição fotográfica. A iniciativa compõe o projeto cultural “Sankofa: ancestralidade, memória e negritude”, financiado pelo Edital SEDAC FAC Patrimônio.
    O estudo é conduzido pela historiadora e doutoranda em História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Franciele Rocha de Oliveira.

    Ela destaca que trazer à tona as histórias dos clubes sociais negros e dos homens e mulheres que os construíram é fundamental para compreender uma outra história social do RS. “Territórios que receberam imigrantes ítalo-germânicos, como no caso de Santa Cruz do Sul, acabaram forjando a construção de uma imagem centrada na atuação dos imigrantes, associados à história do trabalho e ao progresso. Entretanto, clubes como a Sociedade União, tensionam esta história única, demonstrando a existência de trabalhadores negros e negras que há 100 anos uniram-se na criação de um clube social em que pudessem realizar suas sociabilidades, festas e atividades culturais, sociais, esportivas e políticas em segurança.”

    Ao recolher fotos e documentos, e conduzir entrevistas com membros do clube, Franciele resgata seu surgimento com viés inicial para os esportes, principalmente o futebol. Os integrantes relembram os jogos de cartas, piqueniques, bingos, jantares e os luxuosos bailes de debutantes, além dos tradicionais eventos e desfiles de carnaval. “Tenho me deparado com relatos que reafirmam a importância dos clubes sociais negros, espaços que ficaram marcados em suas memórias até hoje, que promoveram eventos onde essas pessoas sentiam-se valorizadas”.

    Na memória, Ivoni ainda dança

    Entre os entrevistados pela pesquisadora está a santa-cruzense Ivoni Correa da Silveira, a Voninha, de 79 anos. Ex-diretora social do clube, seus pais e irmãos também participaram ativamente, assim como os três maridos. Hoje aposentada e com sequelas de um derrame, ela ainda lembra bem dos dias de baile e das noites de carnaval em que dançava muito e fazia bonito no salão do União.

    Ivoni relembrou também os famosos churrascos que eram realizados no primeiro dia do ano, ao qual comparecia com os pais desde a infância. E até mesmo seu envolvimento organizando jantares, galinhadas e chás, que custeava vendendo rifas e recebendo doações de produtos. Dentro do clube ela testemunhou grandes momentos, como a visita do presidente João Goulart, o Jango, no início da década de 1960.

    Eu nunca pensei que fosse alcançar esses 100 anos. Para mim é uma honra, eu tô aqui, tô feliz e vou participar no que puder, se precisar até vender uma rifa. Eu participo com amor e carinho. A gente morre e ele fica lá. Eu amo o União”, diz, emocionada.

    Uma herança que atravessa gerações

    Adão Francisco Pedroso nasceu em abril de 1949 e vive a meia quadra do União. Aos 74 anos, o técnico contábil aposentado é também presidente de honra do clube. Segunda geração na sociedade, seu pai foi presidente em 1934 e a mãe foi rainha em 1935. Seu envolvimento começou como cobrador das mensalidades dos sócios, depois contratando as bandas de baile que se apresentavam no clube e também como zagueiro no time de futebol.

    Ele destaca a atuação histórica do clube, principalmente a partir dos anos 2000 em projetos sociais nos bairros da cidade. Adão relata um episódio de racismo quando foi a uma festa em um clube tradicionalmente branco e foi convidado a se retirar. “O papel do União é a integração das pessoas, a inclusão do negro na sociedade”, explica.

    Para Clóvis Roberto Silveira, de 69 anos, a infância também foi marcada pela participação na Sociedade União. Filho do famoso goleiro Marabá, que atuava no time do clube, o instrutor de trânsito aposentado é o atual vice-presidente e participou da reestruturação realizada em 1994. De sua história com o União, ele destaca os bailes e os grandes carnavais que marcaram época. “Chegamos a sair na avenida com 500 pessoas, as excursões para carnavais na região iam com seis ônibus”, lembra.

    A atual presidente do clube, Marta Regina dos Santos Nunes, integra uma família que já está na quarta geração dentro do União. Seu tio-avô, José Francisco Ferreira, foi um dos fundadores e presidente do clube e foi assassinado em 1948, aos 34 anos de idade, em um crime marcado pelo racismo. A professora e doutora em Química salienta o papel do clube para o crescimento da comunidade. “Existiam negros em situações econômicas distintas. Algumas famílias conseguem sair deste local de baixo poder aquisitivo e isso impulsiona as outras. Era um local que era possível acessar um exercício de representatividade”, comenta.

    Hoje o desafio é renovar os integrantes do clube, o que ocorre principalmente através dos projetos sociais e do carnaval. A manutenção do espaço também foi dificultada após a pandemia. “Os organismos que poderiam suprir as demandas financeiras que uma entidade como essa possui, não têm essa atenção.” Os objetivos agora são melhorar a estrutura física, retomar as atividades esportivas e conquistar um espaço para preparar os carros alegóricos e materiais para o carnaval.

    Programação inicia no sábado

    As atividades para celebração do centenário do União iniciam neste sábado, dia 1º, com um coquetel de homenagens, às 19 horas, na sede da entidade localizada na Rua  Júlio de Castilhos, 1585, no Bairro Goiás. A comemoração inclui também um jantar na noite do sábado, dia 8, a partir das 20h30min com buffet. Os ingressos são vendidos a R$ 40,00 para sócios e R$ 50,00 para não sócios. Após o jantar haverá programação cultural com a bateria da Acadêmicos do União e Tom Barreto, além do show Botequim da Confra com Dj Didyo.

    No fim do mês, no dia 25, será realizado o VI Encontro de Mulheres Negras de Santa Cruz do Sul – Emune/SCS às 16 horas com cine mulher e debate com convidadas. Contato e informações pelo WhatsApp nos números (55) 99685 4473 ou (51) 91263699.

    Um dos próximos objetivos da entidade é a abertura da Biblioteca Abayomi com obras nacionais e internacionais de autores negros, além de livros sobre cultura e arte afro. Boa parte do acervo já foi adquirida através de curadoria, e atualmente 500 obras aguardam a organização.