Enquanto mastigava a dúvida que ele me serviu, entendi que a pergunta dele não era sobre o que eu faço. Era sobre o que eu amo
Um amigo me diz, assim, com a boca cheia de opinião: ‘Lucas, te vejo escrevendo uns textos, mas isso aí é trabalho? Tem a ver com o que tu faz?’
Ele falou com o garfo ainda levantado, como quem crava a dúvida no prato da gente. E eu sorri, não para ele, mas para mim. Porque ele não entendeu. E, no fundo, talvez, nem eu entenda. Mas o que é entender? Entender é limitar. É querer explicar o inexplicável, encaixar a alma num rótulo. E a escrita, não. A escrita não é redoma, é ventania. Eu escrevo como quem respira. E, às vezes, como quem sufoca.
Eu escrevo na mesa de reuniões, quando alguém fala demais e diz de menos. Escrevo no semáforo, enquanto o carro ao lado bufa de pressa. Escrevo enquanto eu tento não ser tragado pelo cansaço de ser eu mesmo. E, então, quando o último e-mail foi respondido, e o dia deveria terminar, é quando começa o meu momento. Quando desligo o computador, mas acendo meu próprio pensar.
E, naquele almoço, enquanto mastigava a dúvida que ele me serviu, entendi que a pergunta dele não era sobre o que eu faço. Era sobre o que eu amo. Porque escrever não paga boleto, mas acalma a tormenta. Não coloca placa de ouro na porta, mas coloca asas no peito. E isso, para quem conta cifrões, não faz sentido. Mas para mim, faz o único sentido.
Talvez eu nunca consiga explicar o que faço — e está tudo bem. Porque quem só vê o texto não vê o coração que o sangrou. Não vê a liberdade de pensar, de não precisar de permissão para sentir. Escrever é o meu jeito de voltar a mim mesmo, de lembrar quem sou, quando tudo lá fora tenta me esquecer.
E assim, entre o garfo e a faca, respondi sem responder: ‘Sim, escrevo. E isso tem tudo a ver comigo. Só comigo.
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